Cada coisa é irrepetível e não tem nada igual nunca

O enunciado é a forma físico-linguística de uma ideia. Por isso, não consiste somente na frase, mas na frase falada - com data, local, locutor, interlocutor e propósito daquele. Não consiste também e somente no texto, mas no texto publicado - com igualmente data, local, autor e leitor e motivação daquele. O enunciado é um evento físico, temporal, linguístico, vivo e dinâmico. 
Por isso, cada enunciado é único. Não há enunciados repetíveis, somente enunciados semelhantes. Não se pode repetir um enunciado por questões físicas. A localização no tempo-espaço é um fator determinante. Mesmo que um dia adquiramos a habilidade de voltar no tempo não há como re-enunciar algo, porque estar ciente da repetição do enunciado já interfere na própria enunciação. 
Cada 'oi' proferido é um cumprimento completamente distinto, porque, apesar de envolver sempre o mesmo locutor (você), há diferentes interlocutores em locais e datas distintos com propósitos variantes e entonações e articulações físicas específicas. O 'oi' da sua vizinha ontem será diferente do 'oi' da sua vizinha hoje, que será diferente de todos os outros 'ois' que você receberá durante toda a sua vida - porque cada um deles será enunciado de maneira ímpar.


Cada enunciado é, repito, um evento físico-linguístico inigualável. 


E se o enunciado é a expressão de uma ideia, e ele mesmo, como expressão, é único - o que resta de repetibilidade para as ideias? Se uma ideia é fruto da cognição, da experiência, do contato com o meio e com outros, por que seria ela passível de repetibilidade também?
Assim, uma ideia é também irrepetível, bem como os eventos e as experiências que a motivam no momento de concepção. 
Cada conclusão, nexo ou pensamento que lhe vem à cabeça acontece só uma vez. Caso este ocorra novamente, virá de forma distinta. Seja pela recorrência ou seja porque foi causado por outro evento - as ideias são também inigualáveis na sua ocorrência e, por isso, constituição.
E já que estamos tomando os detalhes de ocorrência como constituintes, por que diabos então cada experiência pela qual passamos seria passível também repetibilidade? Por que insistimos em encontrar tal princípio em tudo aquilo que vivemos?
Se o enunciado é único, assim como as ideias que o baseiam, por que diabos então seriam os eventos que motivam tais ideias repetíveis? Isso não faria sentido algum!
Desta forma, não há eventos de cognição repetíveis. Não há experiências sensoriais iguais. Não há episódios recorrentes. Tudo ocorre de maneira única e nova - por mais que se pareça igual ao que já ocorreu.
Cada beijo, abraço, mordida, relacionamento, orgasmo, riso, cumprimento, carinho, conflito, desejo - tudo, tudo por que passamos, tudo é inigualável em suas particularidades constituintes. Não há repetições no plano em que vivemos. O cronotopo, como eu disse, o espaço-tempo, é fator determinante. 


Você pode ter transado com a mesma pessoa um milhão de vezes. Ou ter transado com pessoas diferentes no mesmo local todos os dias do ano. Mesmo assim, todas essas transas serão únicas e irrepetíveis. O tempo fora distinto em cada uma delas, assim como o local. Faz parte da existência física não repetir nada!
Sem mencionar o tempo, também posso citar os anseios, os desejos, as crises - tudo o que se passava pela sua cabeça em cada uma das transas - tudo fora único, e tudo torna cada transa única. Não há, em hipótese alguma, como repetir nenhuma dessas transas. Mesmo que você reencontre a pessoa com a qual você deseja reviver o sexo, vocês dois já terão constituído novas narrativas cognitivas que suscitarão novos anseios e, por isso e pelo cronotempo irrepetível, vocês nunca repetirão a mesma transa. Nunca!

Com essa irrepetibilidade em mente (dos enunciados, das ideias e, principalmente, dos eventos) deixo minha nostalgia e meu egotismo mortos. Quem sabe, daqui em diante, eu possa viver com outras perspectivas diferentes da busca pelo que já se foi ou a subestimação do que está por vir. Talvez seja enfim mais saudável aceitar a singularidade das coisas - já que não posso evitá-la em quaisquer das instâncias do meu existir.

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Sobre o Autor

Gosta de línguas, reflexões introspectivas, UTAU/Vocaloid, discussões sobre gênero e sexualidade, do céu e de fazer da vida alheia um bordado de renda (de chita filó).

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