Sempre que você se senta aí e toma o seu chá eu me pergunto se você tem consciência de que não é possível se ver.
Vejo quando você me olha por detrás da caneca. Vejo sua expressão quando a levanta para sorver o chá e logo a pousa sob o porta-copos. Tenho uma imagem do que você é agora. As pessoas, em geral, sabem que você é você e mais ninguém. Você está aí na cadeira tomando chá, e me olha de vez em quando. Eu vejo você. O mundo vê você. Tenho certeza absoluta, contudo, que você não se vê.
Sabe, creio que vivamos num cenário meio controverso. A gente cultua a nossa própria imagem. Amamos espelhos. Utilizamos muito a palavra "eu" - a mais recorrente na nossa língua. Tiramos selfies o tempo inteiro. Atualizamos nossas redes sociais (santuários individuais) todo dia e todo o dia. Somos bem eu. Bem egoístas. Gostamos de exibir nossa identidade e o quão únicos podemos ser. E no entanto, nunca nos alcançamos efetivamente. Nunca nos vemos. Você nunca se viu. Seu rosto - seu verdadeiro rosto - nunca foi visto pela pessoa mais interessada nele: você.
É inútil analisar o espelho da cozinha. Você sabe que a imagem da pessoa sentada bebendo chá não é exatamente você. Uma coisa refletida é uma coisa refletida - e não o objeto que originou a reflexão. A inversão das dimensões horizontais faz a reflexão trair o objeto refletido. Sua direita se tornou sua esquerda e o que espelho mostra é diferente do que eu, aqui do outro lado da cozinha, vejo de você. Eu, sim, vejo o que você é. O reflexo só engana. É uma imitação barata em vidro.
E o mesmo vale para qualquer outro tipo de representação que você pensou até agora ser sua. O monitor do computador desligado. Os vidros escuros nos prédios do centro. A câmera frontal do seu smartphone. Todos eles corrompem o que eu vejo. Cópias invertidas, distorcidas em cores, dimensões e proporções da realidade - do que eu vejo de você. Todas essas coisas afastam do seu alcance o que você realmente é para as pessoas. O cenário em que vivemos, onde o eu é o centro, torna-se no mínimo paradoxal. Vivemos para algo que nunca alcançamos.
Não, claro que as representações digitais não são o caminho para você se ver. Leve em conta até a câmera mais potente de todas. Uma máquina com alta capacidade de captura. É óbvio que ela tem de ser filmadora também, afinal, só um momento de você não é você na sua totalidade. Um milésimo de você levantando sua xícara é só um milésimo do todo. Algo tão distante do todo que nem vale a pena discorrer sobre. Enfim, filme-se com essa câmera. Você pode até desconsiderar que mesmo a câmera mais potente de todas não se equivale ao olho humano. Finjamos que a quantidade de cores e a proporção dos objetos vai ser mesmo capturada pela tal câmera. Mesmo assim, onde você irá reproduzir o vídeo que você gravou de si? Exatamente. Num telão? Que vai distorcer a imagem conforme o pano que o compor e o ambiente em que for colocado? Numa tela de computador? Que vai comprimir você em pixels e submeter você ao contraste da tela? Não adianta. Qualquer tela eletrônica trairá o que eu vejo. De novo, são imitações baratas em vidro ou em lona.
Você nunca vai se ver. Conforme-se com isso. Os espelhos, as câmeras e os outros tipos de reflexos sempre vão trair o que eu vejo de você. Olhe agora para a sua mão direita, a que segura a caneca de chá. É o máximo que você vai ver de si. Movimente-a, leve-a para perto do seu inacessível rosto. Toque-o. Tateie-o. É o limite, o mais longe que você pode chegar do que eu vejo. Resigne-se à sua incapacidade de se ver de verdade. Você sempre será cego quando se trata de si.
Sobre o Autor
Gosta de línguas, reflexões introspectivas, UTAU/Vocaloid, discussões sobre gênero e sexualidade, do céu e de fazer da vida alheia um bordado de renda (de chita filó).
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